Bom demônio
Em
grego, felicidade se diz “eudaimonia”, palavra que é composta do prefixo “eu”,
que significa “bom”, e de “daimon”, “demônio”, que, para os gregos, é uma
espécie de semi-deus ou de gênio, que acompanhava os seres humanos. Ser feliz
era dispor de um “bom demônio”, o que estava relacionado à sorte de cada um.
Quem tivesse um “mau demônio” era fatalmente infeliz.
Não
há dúvida de que, entre os séculos 10 a.C. e 5. a.C, o pensamento grego tende a
considerar os maus demônios mais frequentes do que os bons e apresentar uma
visão pessimista da existência humana. Não é por acaso que os gregos inventaram
a tragédia. Uma expressão radical desse pessimismo nos é fornecido por um velho
provérbio grego, segundo o qual “a melhor de todas as coisas é não nascer”.
Foi
a filosofia que rompeu com essa visão pessimista e procurou estabelecer
orientações para que o homem procurasse a felicidade. Demócrito de Abdera(aprox. 460 a.C./370 a.C.)
julgava que a felicidade era “a medida do prazer e a proporção da vida”. Para
atingi-la, o homem precisava deixar de lado as ilusões e os desejos e alcançar
a serenidade. A filosofia era o instrumento que possibilitava esse processo.
Virtude e justiça
Sócrates (469
a.C./399 a.C.) deu novo rumo à compreensão da ideia de felicidade, postulando
que ela não se relacionava apenas à satisfação dos desejos e necessidades do
corpo, pois, para ele, o homem não era só o corpo, mas, principalmente, a alma.
Assim, a felicidade era o bem da alma que só podia ser atingido por meio de uma
conduta virtuosa e justa.
Para
Sócrates, sofrer uma injustiça era melhor do que praticá-la e, por isso, certo
de estar sendo justo, não se intimidou nem diante da condenação à morte por um
tribunal ateniense. Cercado pelos discípulos, bebeu a taça de veneno que lhe
foi imposta e parecia feliz a todos os que o assistiram em seus últimos
momentos.
Entre
os discípulos de Sócrates, Antístenes (445
a.C./365 a.C.) acrescentou um toque pessoal à ideia de felicidade de seu
mestre, considerando que o homem feliz é o homem autossuficiente. A ideia de
autossuficiência (que, em grego, se diz “autarquia”,) continuará diretamente
vinculada à de felicidade nos setecentos anos seguinte.
Uma função da alma
Mas
o maior discípulo de Sócrates, que efetivamente levou a especulação filosófica
adiante de onde a deixara seu mestre, foi Platão (427
a.C./347 a.C.), o qual considerava que todas as coisas têm sua função. Assim,
como a função do olho é ver e a do ouvido, ouvir, a função da alma é ser
virtuosa e justa, de modo que, exercendo a virtude e a justiça, ela obtem a
felicidade.
É
importante deixar claro que noções como virtude e justiça integram uma vertente
do pensamento filosófico chamada Ética, que se dedica à investigação dos
costumes, visando a identificar os bons e os maus. Para Platão, a ética não
estava limitada aos negócios privados, devendo ser posta em prática também nos
negócios públicos. Desse modo, o filósofo entendia que a função do Estado era
tornar os homens bons e felizes.
A
ligação entre ética e política estará ainda mais definida na obra do mais
importante discípulo de Platão, Aristóteles (384
a.C./322 a.C.), o qual dedicou todo um livro à questão da felicidade: a “Ética
a Nicômaco” (que é o nome de seu filho, para quem o livro foi escrito). Amigo
de Platão, mas, em suas próprias palavras, “mais amigo da verdade”, Aristóteles
criticou o idealismo do mestre, reconhecendo a necessidade de elementos
básicos, como a boa saúde, a liberdade (em vez da escravidão) e uma boa
situação socioeconômica para alguém ser feliz.
Felicidade intelectual
Por
outro lado, a partir de uma série de raciocínios que têm como base o fato de o
homem ser um animal racional, Aristóteles conclui que a maior virtude de nossa
“alma racional” é o exercício do pensamento, pelo quê, segundo ele, a
felicidade chega a se identificar com a atividade pensante do filósofo, a qual,
inclusive, aproxima o ser humano da divindade.
Sem
perder de vista a aplicação prática de suas ideias, Aristóteles considera a
política como uma extensão da ética e, nesse sentido, para ele também é uma
função do Estado criar condições para o cidadão ser feliz. O Estado que o
filósofo tinha em mente, porém, era a “polis” grega, que, naquele momento,
estava deixando de existir, com o surgimento do império de Alexandre o Grande.
Depois
de Alexandre, no mundo grego ou helênico, desenvolveram-se três escolas
filosóficas que vão se estender até o fim do Império romano, as chamadas
filosofias helenísticas. Todas elas, por caminhos diferentes, chegam a
conclusão de que, para ser feliz, o homem deve ser não só autossuficiente, mas
desenvolver uma atitude de indiferença, de impassibilidade, em relação a tudo
ao seu redor. A felicidade, para eles, era a “apatia”, palavra que, naquela
época, não tinha o sentido patológico que tem hoje.
Prazer e salvação da alma
Entre
os filósofos do mundo helênico, pode-se citar Epicuro (341
a.C./271 a.C.), para deixar claro que essa ideia de “apatia” não significa
abdicar ao prazer. O prazer era essencial à felicidade para Epicuro, cuja
filosofia também é conhecida pelo nome de hedonismo (em grego “hedone” quer
dizer “prazer”). Mas ele deixa claro, numa carta a um discípulo, que não se
refere ao prazer “dos dissolutos e dos crápulas” e sim ao da impassibilidade
que liberta de desejos e necessidades.
Com
o fim do mundo helênico e o advento da Idade Média, a felicidade desapareceu do
horizonte da filosofia. Estando relacionada à vida do homem neste mundo, ela
não interessou aos filósofos cristãos como Agostinho de Hipona (354 d.C./430 d.C.), Anselmo de Canterbury (1033/1109) ou Tomás de Aquino(1225/1274), todos santos da
Igreja católica. Para a filosofia cristã, mais do que a felicidade, o que conta
é a salvação da alma.
Os
filósofos voltaram a se debruçar sobre o tema na Idade Moderna. John Locke(1632/1704) e Leibniz (1646/1716),
na virada dos séculos 17 e 18, identificaram a felicidade com o prazer, um
“prazer duradouro”. Alguns décadas depois, o filósofo iluminista Immanuel Kant (1724/1804), na obra “Crítica da razão
prática” definiu a felicidade como “a condição do ser racional no mundo, para
quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade”.
Direito do homem
No
entanto, para Kant, como a felicidade se coloca no âmbito do prazer e do
desejo, ela nada tem a ver com a Ética e, portanto, não é um tema que interesse
à investigação filosófica. Sua argumentação foi tão convincente que, a partir
dele, a felicidade desapareceu da obra das escolas filosóficas que o sucederam.
Mesmo
assim, não se pode deixar de mencionar que, no mundo de língua inglesa, na
mesma época de Kant, a ideia de felicidade ganhou lugar de destaque no
pensamento político e buscá-la passou a ser considerada um “direito do homem”,
como está consignado na Constituição dos Estados Unidos da América, que data de
1787 e foi redigida sob a influência do Iluminismo.
Egocentrismo e infelicidade
É
também no âmbito da filosofia anglo-saxônica, no século 20, que se encontra uma
nova reflexão sobre nosso assunto. O inglês Bertrand Russell (1872/1970) dedicou a ele a obra “A
conquista da felicidade”, usando o método da investigação lógica para concluir
que é necessário alimentar uma multiplicidade de interesses e de relações com
as coisas e com os outros homens para ser feliz. Para ele, em síntese, a
felicidade é a eliminação do egocentrismo.
Mais
recentemente, em 1989, o filósofo espanhol Julián Marías também dedicou ao tema
um livro notável, “A felicidade humana”, em que estuda a história dessa ideia,
da Antiguidade aos nossos dias, ressaltando que a ausência da reflexão
filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um sintoma de
como esse mesmo mundo anda muito infeliz.
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Profª Aloizia